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quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Doralice

Cresci em uma família de classe média, acostumada a algumas "regalias" típica do bairro Paulista onde vivo, durante alguns anos dividíamos com uma vizinha quatrocentona, o andar, a origem familiar do Norte Pioneiro Paranaense e a funcionária, duas vezes por semana no 52 outras duas no 53.

Dora veio trabalhar em casa quando eu tinha uns 11, 12 anos, uma senhora negra, de voz doce, foi ela com toda sua doçura que me explicou que existiam linhas sociais, invisíveis mas que eu e ela estávamos em lados opostos. 

Dora não sentava no sofá, não comia primeiro, aceitava o que nos oferecíamos com muito receio, se constrangia quando eu chegava do colégio e dava um beijo nela. 

Uma vez questionei porque ela usava o banheiro lá de fora, o cômodo era um amontoado de prateleiras, onde se guardava pano de chão, tábua de passar, vassouras, rodos e também onde ficava a cama do cachorro. 
"-Não dá para usar esse banheiro.
-Mas é o meu banheiro."

Dora começou a trabalhar com 9 anos na casa da vizinha, que vivia com o marido e três filhos homens (praticamente da mesma idade dela), veio "ajudar" mas era muito bem "cuidada", estudou, ganhava roupas, sapatos, presente de natal, era como uma "filha". 

Na verdade Dora teve a infância ceifada, nunca teve carinho, perdeu o contato com  os pais, deixou a casa dos patrões só quando se casou - passou sua noite de núpcias no seu quartinho sozinha. Quando a família veio para São Paulo, o quarto se transformou no banheiro de Dora. 

Hoje sei que despretensiosamente, Doralice em nossas longas conversas, sem nunca ter lido Marx ou Gilberto Freyre, me ensinou muito sobre luta de classes e realidade brasileira. 

Semana passada lendo a respeito da faxineira demitida por ter usado o único banheiro da casa em que trabalhava, recordei-me dos ensinamentos empíricos da minha professora. 

Fiquemos atentos, o mesmo tipo de gente de "bem" que acha natural separar banheiros, acha normal escravizar pessoas. 


quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Incólume

Nos últimos tempos peguei um amor incondicional por manteiga, manteiga de verdade, antes vilã, ela agora é a "queridinha" dos adeptos da "comida de verdade", assim como o ovo e o abacate, o momento difícil da manteiga não é mais lembrado. 

Passei as duas últimas semanas sozinha em casa, o que não é muito anormal desde que eu tinha uns 16 anos e deixei de ir em viagens de férias com meus pais. 

Pensei muito no correr desses dias que envolveram grandes períodos de silêncio, uma dieta baseada em pão, presunto, queijos, tomate, pavê de abacaxi (que estava realmente incrível), bons disco, muito incenso, alguns cigarros e longas caminhadas. 

Apesar de ir para rua nos momentos tediosos, esse tempo só comigo fez eu me tratar com mais doçura, me peguei gargalhando sozinha uma porção de vezes e como não acontecia há muito tempo, olhei para mim e me vi inteira. 

Parece que assim como o momento difícil da manteiga, o nosso também deixou de ter valor. 



segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Que cor?

Normalmente eu falo muito, mas quando algo me deixa muito impactada demoro para processar as informações. Algumas semanas atras alguém me procurou querendo um conselho, que só agora depois de digerir tudo que aconteceu consigo dar. 

Uma vez brincando de elefante colorido no muro da escola, pulei me desequilibrei e cai, fui de cara no chão, doeu muito, fiquei sem ir para aula dois dias, não subi na mureta por mais uns três, depois disso eu era a melhor em subir e em pular de lá também. 

Sei que as vezes a vida dói, mas é preciso superar, seguir e voltar a confiar, nos instintos, nos sentimentos e nas pessoas. Falar é sempre mais fácil, sei disso também, apesar das dores a vida é ainda maravilhosas.

Se abre pro mundo mesmo que seja por vingança, só pra mostrar como você está feliz e superou o que aconteceu, que aquilo é tão longe hoje que você já não lembra mais. E para mesmo de lembrar. 


As vezes a gente quebra a cara e dói, dói muito, mas subir no muro de novo e voltar a pular é importante, quando alguém gritar sua cor, pula, esse é o melhor conselho que tenho para dar.